A era da inteligência artificial deu novo alcance a uma frase conhecida, embora de autoria contestada: “No Brasil, até o passado é incerto”. Olhamos para uma foto e vemos Gabigol com a camisa do Corinthians, o atacante alega que a foto foi manipulada e, de pronto, duvidamos até do que estamos vendo. Aparentemente, o Flamengo não duvida, tanto que puniu o atacante. E este, em seu primeiro pronunciamento, driblou tanto o pedido de desculpas quanto o debate sobre a legitimidade da foto.
Parece haver, neste momento, mais motivos para acreditar no que vimos. E, sendo assim, Gabigol contrariou leis escritas e não escritas do futebol. Ele não é novo nesta indústria, muito menos o papel de ídolo lhe é recém-chegado. Ao contrário, poucos atletas parecem dominar tão bem a capacidade de se comunicar, de enviar mensagens a cada gesto. Gabigol é um produto típico de uma era da indústria do entretenimento em que parte da vida é vivida nas redes sociais. O agora ex-camisa 10 do Flamengo tem vivência para saber que, no futebol, o que pode parecer uma banalidade, muitas vezes está longe de ser. É preciso ter cuidado.
Neste episódio, as leis escritas parecem as menos importantes. Nestes tempos de fronteiras tênues entre público e privado, Gabigol, embora estivesse em casa, não pôde evitar que se tornasse pública a foto com a camisa do Corinthians. O maior ídolo dos últimos 30 anos da vida rubro-negra vestia a camisa de um clube rival, exibia marcas de patrocinadores deste adversário, que por sua vez rivalizam com financiadores do clube que ele defende. É provável que contratos de imagem tratem do tema de forma clara. E o Flamengo já anunciou uma punição.
Mas o que dá ao tema tanta repercussão são as leis não escritas do jogo. E estas mexem com um aspecto essencial da alma do futebol: a paixão. Não é justo exigir que jogadores de futebol se relacionem com o clube que defendem de forma tão passional quanto a arquibancada, é possível que entendam o jogo como um trabalho, entregando o melhor que puderem em treinos e jogos, mas vivendo suas vidas no restante do tempo. O pecado é não entender as peculiaridades deste trabalho, permitir-se cruzar a fronteira da insensibilidade.
Gabigol é o símbolo de um ciclo de conquistas que o Flamengo só vivera na chamada Era Zico. É o rosto do Flamengo para uma geração. E quando alguém deste tamanho se permite ser visto com a camisa de um rival, um encanto se quebra e muitas pessoas se machucam. A condição de ídolo oferece fartos bônus a quem atinge tal patamar, mas dentre os tantos ônus está uma liturgia, um ritual a cumprir. E o pecado maior é desapontar as pessoas.
Esta indústria movida pela paixão aceitou, há algum tempo, que jogadores vêm e vão. Que a camisa, o escudo, este sim é intocável. Mas há jogadores de exceção, que revitalizam a relação entre campo e torcida. E Gabigol conseguiu produzir esta química, reacender esta chama na torcida. E para jogadores assim, é inevitável que a arquibancada alimente a fantasia de que o ídolo é um membro da comunidade, dono de uma fidelidade incondicional à causa. Ele pode, um dia, até vestir outras cores, mas nunca enquanto a relação estiver vigente. Uma imagem como a de Gabigol com a camisa de um rival soa como uma afronta. Os ídolos não precisam ser torcedores apaixonados dos clubes que defendem, mas é importante que pareçam ser. É assim que os dois lados são felizes.
E no episódio Gabigol, há um agravante: era a arquibancada rubro-negra seu último suporte. Ali havia muita gente que gritava por ele a cada jogo, numa espécie de exercício de fé. Porque o campo, os jogos, o mundo real, nada disso mostrava um jogador sequer próximo de sua plenitude. Ao contrário, a sensação era de um jogador e de um atleta distante do melhor rendimento. Mas, partida após partida, a mesma arquibancada que defendeu o atacante até quando foi acusado de fraude num exame antidoping – episódio em que o jogador se comportou mal -, pedia Gabigol. Era como se acreditasse na volta de um futebol que há um ano e meio não ressurge. Mas a imagem do ídolo ainda era muito poderosa. Foi esta gente que ele machucou. Com paixão não se brinca.
Fonte: netfla.com.br