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“A um passo do Maracanã”: haitianos do Pérolas Negras superam dramas pessoais e buscam acesso à elite do Carioca

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Na primeira vez que Badio esteve na arquibancada do Maracanã, ao contemplar aquela imensidão, seus pensamentos foram transportados para uma memória antiga de quando morava em Porto Príncipe, no Haiti, e assistia a jogos do Flamengo e Santos pela TV. Naquele dia, em 2018, fez uma promessa a si mesmo: voltaria ao estádio, mas para pisar no gramado e jogar.

A realização desse sonho é o que move o zagueiro Badio e seu time, o Pérolas Negras, equipe que surgiu em 2009, como parte da Missão de Paz do Brasil no Haiti, e que chegou ao Brasil em 2016. O time, que fará sua primeira participação na Série A2 do Carioca, estreia no sábado, contra o Araruama. A divisão é a porta de entrada para a elite do estadual e, consequentemente, para jogar no icônico estádio do Rio.

— Desde aquele dia, em 2018, acreditava que um dia colocaria as chuteiras para jogar ali. E esse sonho agora está muito mais perto. Parece que cai um cisco no olho. Subimos e fiquei imaginando: “parece que a gente estava tão longe quando começou” — contou Badio.

Garrinsha, Davidson e Badio, do Pérolas Negras — Foto: Ronald Lincoln

Badio fez parte da primeira leva de haitianos que chegou ao Brasil vinda do braço da Academia Pérolas Negras criado no país caribenho. Participou de todas as campanhas de acesso desde a última divisão, em 2017, mas só em 2024 assumiu um papel de protagonismo, com a braçadeira da capitão e gol de acesso. Um roteiro de drama e superação.

Um ano antes, Badio abandonou a carreira de jogador para cuidar do filho Gael, em Itápolis-SP, onde tem residência fixa fora da temporada. A criança nasceu com um coágulo no cérebro e passava por um tratamento delicado.

Nesse período, Badio teve de buscar uma nova forma de sustento e encontrou emprego bem longe do futebol, como auxiliar de mecânico de uma oficina e de uma usina de cana. Gael acabou não resistindo e morreu no início do ano passado. Mais um baque na vida do jogador.

— Trago as fotos, umas roupinhas dele estão aqui comigo. Sempre jogo por ele. Ele me ensinou bastante enquanto esteve aqui, que a vida não é só brincar, a gente tem que levar a vida com seriedade — disse.

Meses depois, o Pérolas Negras convidou Badio para a disputa da Série B1, a terceira divisão do Carioca. De volta ao clube, o técnico Medina escolheu Badio para liderar.

— O Badio é muito técnico. Sempre buscando o jogo, com um jogo curto eficiente. Tem o drible, gingado e consegue clarear situações de pressão. É muito forte fisicamente e rápido. É um atleta muito sério, trabalhador. É uma base sólida para a minha equipe — afirmou o técnico João Medina.

A disputa da semifinal com o Artsul começou com derrota, por 2 a 1, no jogo de ida. Na volta, o time de Porto Real deu o troco, vencendo por 2 a 0

. E o segundo e decisivo gol foi marcado pelo zagueiro, em um raro momento em que se arriscou na área

. O Pérolas acabou derrotado na final, mas a vaga no Série A2 já estava garantida — sobem os dois primeiros colocados.

O primeiro desafio de 2025 é se manter na nova divisão. Mas o time mantém o sonho perto.



Perguntei no primeiro ou no segundo dia se alguém já havia jogado no Maracanã e apenas um atleta levantou a mão. Então falei: “nosso objetivo é esse, a gente está a um passo do Maracanã”

. Para esta temporada vamos ter que construir tudo do zero. Mas se a gente correr atrás, trabalhar com ambição, no ano que vem a gente pode estar lá — contou o técnico Medina.

O projeto Pérolas Negras foi criado em 2009, como parte da Missão de Paz do Brasil no Haiti. Em 2010, o trabalho teve de ser paralisado em razão do forte terremoto que deixou milhares de mortos no país do Caribe. No ano seguinte, após uma reforma o projeto foi retomado.

Somente em 2016, o Pérolas Negras chegou ao Brasil, com a formação de um time para disputar a Copinha. No ano seguinte, ocorreu a filiação na Ferj, e a disputa da Série C.

Desde então, a equipe tem feito campanhas sólidas, que a levaram à segunda divisão do Carioca.

A morte do presidente Jovenel Moïse, em 2021, mergulhou o Haiti em uma nova crise humanitária que persiste até hoje, com boa parte do país sofrendo sob o domínio de gangues e sem acesso a serviços básicos. A situação afetou a Academia Pérolas Negras, que teve que suspender as atividades em Porto Príncipe, interrompendo também a possibilidade de novos jogadores tentarem a carreira no Brasil.

O Pérolas Negras, em suas muitas frentes, também acolhe refugiados de outros países, como a Síria e Venezuela, mas os haitianos, que antes eram maioria dos jogadores, hoje são representados por apenas três pessoas no futebol: Badio, o atacante Garrinsha e o analista de desempenho Davidson.

Apesar das dificuldades do outro lado do oceano, o Pérolas Negras se orgulha das pratas da casa.

— O Garrinsha nos classificou para o mata-mata e o Badio nos classificou para a segunda divisão. O Davidson foi jogador e hoje ele é analista. Não são café com leite, são titulares. Nossa missão com o Haiti, com a Síria e com a Venezuela vai além dos campos. Quando consegue casar o social com alto rendimento é o ideal — explicou o gerente de futebol, Bruno Vecchio.

Destaque da equipe, o ponta Garrinsha também sofre com os efeitos da guerra civil no Haiti e a nova política de imigração dos Estados Unidos. Enquanto se prepara para a Série A2, ele trabalha para trazer os pais para o Brasil.

— Os bandidos infelizmente tomaram grande parte do território. Invadiram nossa cidade e tive que alugar uma casa para eles em outra cidade, que também foi tomada. Graças a Deus, tiveram a oportunidade de ir para os Estados Unidos. Mas hoje a gente sabe como estão os Estados Unidos. Eles tiveram visto por 2 anos. Quando acabar, se não renovar, estou tentado que venham. O Brasil é um país que dá muita oportunidade para os imigrantes — explicou Garrinsha.

O nome do jogador é uma homenagem do pai ao ídolo do Botafogo, Garrincha. O haitiano chegou ao Brasil em uma leva seguinte à de Badio. Em 2019, ele foi convidado para realizar teste em Porto Príncipe após se destacar em um amistoso defendendo a escolinha de futebol de seu pai contra a Academia Pérolas Negras.

Garrinsha é o destaque técnico do Pérolas. É um ponta habilidoso, rápido e de boa finalização, e se inspira no Vinícius Junior, do Real Madrid. Sua qualidade o fez ser cobiçado por outras equipes do Rio e São Paulo, e o jogador entrou na roda de andarilhos no futebol brasileiro. Além da equipe de Porto Real, já defendeu o Sampaio Corrêa, do Rio, e equipes do interior de São Paulo, como São Bernardo, Penapolense e Comercial. Garrinsha mira, num futuro próximo, estar jogando a Série A do Brasileirão e, depois, numa grande liga europeia. Além de pagar as próprias contas com o dinheiro do futebol, Garrinsha também consegue ajudar os familiares.

— A gente sabe como é o futebol brasileiro. É muito difícil, a gente vê quantos talentos pararam de jogar por falta de oportunidades. Então me sinto muito bem quando elas surgem. Tento aproveitar. É cansativo, mas sei que é importante, é o que paga nossas contas.

Fonte: Globo Esporte

Fonte: netfla.com.br